Pergunte a alguém o que estava fazendo, por exemplo, dia 7 de
setembro de 1994, no período da manhã? Se rebuscar o relatório daquela
data nas fichas arquivadas na memória já representa um exercício de
elevada dificuldade, tendo ainda estabelecido uma faixa de horário se
torna quase impossível de lembrar. A não ser que por alguma razão em vez
de colocarmos a ficha na gaveta dos “Genéricos” a tivéssemos acomodado,
com carinho, no arquivo “Muito Importante”, de acesso imediato, não
importando quanto tempo depois.
Mudemos um pouco a pesquisa: o que você estava fazendo no dia 1º de maio de 1994, no período da manhã?
-
Deixe me ver...hei, espera aí, dia 1º de maio de 1994? Já sei onde você
quer chegar. Claro que sei a que você se refere. O que deseja saber,
posso te contar em detalhes?
Não precisa ser fã da F-1. Tampouco de Ayrton Senna.
A maioria se recorda, ainda, com clareza, o que fazia naquele domingo,
1º de maio de 1994. Classificaram a ficha do dia sem maiores avaliações,
desnecessárias, na seção “Muito Importante”. O mais interessante nesse
comportamento é que para parte desses cidadãos comuns, até mesmo um
pouco distantes da disputa esportiva da F-1, essa classificação da ficha
foi involuntária. Bem como, agora, a sua manutenção lá.
Por
alguma razão, a perda daquele homem e toda a comoção gerada os fizeram
até escrever as anotações da ficha em letra de forma com algum tipo de
tinta que garante maior longevidade no papel. E 21 anos do ocorrido,
portanto, como é o caso hoje, representam nada quando confrontados com o
previsto para a preservação da ficha no seu estado mais natural
possível.
Parece existir uma relação de cumplicidade entre milhões de brasileiros e o que Ayrton Senna representa.
Na
realidade, já está em curso um fenômeno decorrente desse processo de
manter viva a ficha relativa a 1º de maio de 1994 no arquivo “Muito
Importante”. No ano passado, na celebração dos 20 anos da passagem de
Ayrton Senna, no mesmo local onde uma nova porta se abriu para o
prosseguimento da sua obra, na curva Tamburello, no Circuito Enzo e Dino
Ferrari, em Ímola, Itália, crianças acompanhavam seus pais numa
caminhada pela pista.
O corso de 20 mil admiradores do
trabalho de Ayrton Senna como piloto e da visão de vida sempre exposta
nas entrevistas, onde prevaleciam valores como tenacidade, determinação,
coragem, gana, perseverança, parou diante do muro onde o carro da
Williams se chocou na sexta volta do GP de San Marino.
Às
14h17, Ezio Zermiani, o locutor do evento, repórter da TV italiana nos
20 anos de F-1 de Ayrton Senna, pediu um minuto de silêncio para todos.
Exatamente naquele horário ocorreu o acidente, 20 anos antes. O circuito
encontra-se no meio do parque Acque Minerali. Nesse instante, apenas
pássaros e o harmônico som das folhas em movimento nas árvores eram
escutados pela alma dos presentes.
Aquilo tudo pareceu
contagiar até mesmo crianças de pouca idade. Em seguida, mas apenas aos
poucos, todos voltaram a se falar, em voz baixa, pausadamente. O minuto
de silêncio gerou consequências no emocional de cada um.
Meninos e meninas ouvidos por jornalistas durante a caminhada de
volta ao paddock do autódromo demonstravam conhecer Ayrton Senna bem
mais do que se poderia esperar. Pois nunca o viram competir,
manifestar-se, a não ser através de vídeos.
- Desejo que
minha filha compreenda o que Senna passou como mensagem. A importância
de acreditar em você mesmo, definir com precisão os objetivos e nunca
desistir de persegui-los. Pois de alguma forma você os atinge - lembrou
um empresário italiano.
E aqui há outro aspecto do legado de
Ayrton Senna: a universalidade da sua mensagem. E possivelmente
eternidade. No exemplo mencionado era uma família italiana desejando
passá-la a filha. A filosofia de Ayrton Senna se estende até além do
passo a passo da formação de um piloto profissional. Combina a técnica,
dedicação, o desprendimento exigidos com os princípios de vida que, sem
eles, não é possível obter sucesso. E seu patamar de conquistas é, da
mesma forma, bastante elevado. Para Ayrton Senna, apenas representar o
máximo tem maior validade. Essencialmente, entender o seu valor e ter o
reconhecimento como “o melhor”.
Hoje, 21 anos depois da
passagem de Ayrton Senna, a geração que ele contaminou está inoculando
em seus descendentes o mesmo coquetel de vírus. Faz questão de ver seus
filhos desenvolverem a mesma “patologia” que os acometeu. “Ela é
benigna”, tratou de explicar o pai de um menino, em Ímola.
No Brasil, a geração que vibrou com as vitórias de Ayrton Senna e se
identificava com sua postura sempre altiva, numa nação de baixa
autoestima, o mantém vivo dentro de si, numa proporção ainda maior que
italianos e japoneses, em especial, explicitamente fãs do piloto e do
homem. A dona de casa, o cobrador de ônibus, o reparador de brinquedos, a
engenheira, o médico, o responsável pela limpeza pública, o
farmacêutico que acordavam mais cedo nos domingos de corrida não
precisam tirar a poeira da ficha arquivada no dia 1º de maio de 1994.
Está, definitivamente, na categoria “Muito Importante”.
Basta
a simples menção da data para, de imediato, localizá-la. Parece, de
repente, pulsar dentro de si. Zelosos, verificam seu estado de
preservação. Não querem, sob hipótese alguma, constatar qualquer traço
de desgaste. Sabem que outras gerações vão recorrer com frequência ao
que foi anotado em detalhes naquela ficha. Com certa tristeza, verdade,
por um lado, afinal no primeiro momento não deixou de ser uma perda, mas
sensação imediatamente superada por um sentimento de elevação, marca
maior da herança de Ayrton Senna.
Globoesporte
==> Foto: Edu Garcia / Agência Estado
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