O portal do Ministério do Esporte publica até o mês de junho, às
vésperas da Copa do Mundo, uma série de crônicas escritas por Nelson
Rodrigues entre as décadas de 1950 e 1970. Os textos foram publicados no
livro “A Pátria de Chuteiras”, lançado em 9 de dezembro pelo ministro
do Esporte, Aldo Rebelo.
São 40 crônicas selecionadas pelo próprio ministro em um trabalho de pesquisa de mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.
Confira abaixo a terceira crônica da série: “Clube não é boteco”. O site do ministério vai publicar dois textos por semana, aos domingos e às quintas-feiras.
"Por outro lado, convém aceitar esta verdade recente — o campeão não é apenas um jogador de futebol. É um herói: nenhum clube, nenhum povo tem o direito de vender seus heróis."
Clube não é boteco (1)
Leio os jornais e observo o seguinte: — uma tendência universal para achar que os campeões do mundo devem aceitar, sim, o próprio leilão. É a filosofia do toma lá da cá, da oferta maior, do lance mais alto. Se oferecem tanto a Vavá e tanto ao clube, o negócio deve ser fechado brutalmente e com a solidariedade e o estímulo da imprensa, do rádio e da televisão. Do contrário, argumenta a maioria dos meus confrades, seria prejudicar o craque e o clube.
É, como se vê, um raciocínio monstruoso, que coloca o problema em termos estritamente mercenários. Ora, as profissões e as pessoas dependem ou, antes, dependem sobretudo de valores gratuitos. Procurarei esclarecer: — a vergonha de uma senhora honesta. É um bem material, negociável, a vergonha de uma senhora honesta? Não, evidentemente. E, no entanto, por esse valor gratuito, ela estará disposta a morrer e matar. E assim o seu marido e os seus filhos. Não ocorreria a ninguém aconselhar a uma mulher casada que aceite uma boa oferta, em dinheiro, do primeiro pilantra. Ela estaria disposta a vender as joias, os talheres, as cadeiras, os lençóis, o diabo a quatro. Menos os seus valores incomerciáveis.
Objetará alguém que eu estou misturando alhos com bugalhos. Nem tanto, amigos, nem tanto. Qualquer profissão há de ter um sentido ético que a justifique e valorize. O futebol profissional exige dinheiro, mas não só dinheiro. Ele implica algo mais, ou seja: implica os tais valores gratuitos que conferem a um jogo, a uma pelada uma dimensão especialíssima. Um match representa algo mais que pontapés. Participam da luta dois clubes e todos os seus bens morais, afetivos, líricos, históricos. No Vasco, o mais importante é um valor gratuito: — a tradição.
Nunca um clube espanhol teria a desfaçatez de querer comprar a tradição vascaína. E por quê? Por causa de um puro e simples problema de vergonha. Do mesmo modo, nenhum clube se lembraria de vender um presidente, embora o presidente seja uma figura infinitamente menos essencial que um campeão do mundo. Eis o ponto nevrálgico da questão: — clube não é boteco para vender tudo. Ele possui coisas que não venderia nem por todo o ouro da Terra.
Dirá alguém que um campeão do mundo é um jogador como outro qualquer. Mentira. Por exemplo — o caso de Vavá. O Vasco está vendendo errado Vavá, está vendendo errado o Vavá do ano passado, o pré-Vavá, o Vavá anterior à Taça Jules Rimet. E há um profundo e irredutível abismo entre um e outro Vavás. São duas pessoas que não se conhecem, não se competem, nem se cumprimentam. O Vavá antigo não tinha a autoridade que conquistou, brava e furiosamente, na Suécia. Era desconsiderado pelos companheiros. Agora, não. Agora pode gritar em campo, pode vociferar e até a bola há de correr atrás dele, como uma cadelinha puxa-saco. E parece que o Vasco ainda não percebeu que tem, em casa, um Vavá, sim, mas transfigurado pelo Campeonato do Mundo.
Daí o equívoco grotesco: — o clube de São Januário trata Vavá como se este fosse o antigo, e não o atual Vavá. Eis a verdade: — os nossos clubes ainda não se acostumaram a ser campeões do mundo. Ainda não reajustaram os seus critérios. Mas eis onde eu queria chegar: — um Vavá, ou Orlando, ou Bellini pertence a esta categoria de valores que não se vende. Sua presença no Vasco é uma glória intransmissível. Poderão vociferar: — “E os milhões?” Eu continuarei argumentando que nós só vivemos e só morremos por valores gratuitos.
Há ainda um aspecto, que vem a ser o interesse do jogador. Acho também improcedente o raciocínio que se usa em relação a Vavá. Ninguém vive só de milhões materiais. E os milhões subjetivos? Só a língua da terra vale um milhão bem-contado. Vão tirar de Vavá o seu idioma e quem pagará por isso? As piadas, os palavrões, em outra língua, que graça podem ter? Alguém insistirá no argumento dos milhões. Não importa. Aqui, Vavá está feliz e realizado como um peixinho no seu aquário. Por outro lado, convém aceitar esta verdade recente — o campeão não é apenas um jogador de futebol. É um herói: nenhum clube, nenhum povo tem o direito de vender seus heróis. Nem o herói tem o direito de vender a si mesmo. Amigos, no dia em que deixarmos de prezar os valores gratuitos, vamos cair todos de quatro, todos.
Jornal dos Sports, 26/7/1958
(1) Esta crônica foi publicada originalmente na coluna “Nelson Rodrigues dá bom dia”. (N.E.)
São 40 crônicas selecionadas pelo próprio ministro em um trabalho de pesquisa de mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.
Confira abaixo a terceira crônica da série: “Clube não é boteco”. O site do ministério vai publicar dois textos por semana, aos domingos e às quintas-feiras.
"Por outro lado, convém aceitar esta verdade recente — o campeão não é apenas um jogador de futebol. É um herói: nenhum clube, nenhum povo tem o direito de vender seus heróis."
Clube não é boteco (1)
Leio os jornais e observo o seguinte: — uma tendência universal para achar que os campeões do mundo devem aceitar, sim, o próprio leilão. É a filosofia do toma lá da cá, da oferta maior, do lance mais alto. Se oferecem tanto a Vavá e tanto ao clube, o negócio deve ser fechado brutalmente e com a solidariedade e o estímulo da imprensa, do rádio e da televisão. Do contrário, argumenta a maioria dos meus confrades, seria prejudicar o craque e o clube.
É, como se vê, um raciocínio monstruoso, que coloca o problema em termos estritamente mercenários. Ora, as profissões e as pessoas dependem ou, antes, dependem sobretudo de valores gratuitos. Procurarei esclarecer: — a vergonha de uma senhora honesta. É um bem material, negociável, a vergonha de uma senhora honesta? Não, evidentemente. E, no entanto, por esse valor gratuito, ela estará disposta a morrer e matar. E assim o seu marido e os seus filhos. Não ocorreria a ninguém aconselhar a uma mulher casada que aceite uma boa oferta, em dinheiro, do primeiro pilantra. Ela estaria disposta a vender as joias, os talheres, as cadeiras, os lençóis, o diabo a quatro. Menos os seus valores incomerciáveis.
Objetará alguém que eu estou misturando alhos com bugalhos. Nem tanto, amigos, nem tanto. Qualquer profissão há de ter um sentido ético que a justifique e valorize. O futebol profissional exige dinheiro, mas não só dinheiro. Ele implica algo mais, ou seja: implica os tais valores gratuitos que conferem a um jogo, a uma pelada uma dimensão especialíssima. Um match representa algo mais que pontapés. Participam da luta dois clubes e todos os seus bens morais, afetivos, líricos, históricos. No Vasco, o mais importante é um valor gratuito: — a tradição.
Nunca um clube espanhol teria a desfaçatez de querer comprar a tradição vascaína. E por quê? Por causa de um puro e simples problema de vergonha. Do mesmo modo, nenhum clube se lembraria de vender um presidente, embora o presidente seja uma figura infinitamente menos essencial que um campeão do mundo. Eis o ponto nevrálgico da questão: — clube não é boteco para vender tudo. Ele possui coisas que não venderia nem por todo o ouro da Terra.
Dirá alguém que um campeão do mundo é um jogador como outro qualquer. Mentira. Por exemplo — o caso de Vavá. O Vasco está vendendo errado Vavá, está vendendo errado o Vavá do ano passado, o pré-Vavá, o Vavá anterior à Taça Jules Rimet. E há um profundo e irredutível abismo entre um e outro Vavás. São duas pessoas que não se conhecem, não se competem, nem se cumprimentam. O Vavá antigo não tinha a autoridade que conquistou, brava e furiosamente, na Suécia. Era desconsiderado pelos companheiros. Agora, não. Agora pode gritar em campo, pode vociferar e até a bola há de correr atrás dele, como uma cadelinha puxa-saco. E parece que o Vasco ainda não percebeu que tem, em casa, um Vavá, sim, mas transfigurado pelo Campeonato do Mundo.
Daí o equívoco grotesco: — o clube de São Januário trata Vavá como se este fosse o antigo, e não o atual Vavá. Eis a verdade: — os nossos clubes ainda não se acostumaram a ser campeões do mundo. Ainda não reajustaram os seus critérios. Mas eis onde eu queria chegar: — um Vavá, ou Orlando, ou Bellini pertence a esta categoria de valores que não se vende. Sua presença no Vasco é uma glória intransmissível. Poderão vociferar: — “E os milhões?” Eu continuarei argumentando que nós só vivemos e só morremos por valores gratuitos.
Há ainda um aspecto, que vem a ser o interesse do jogador. Acho também improcedente o raciocínio que se usa em relação a Vavá. Ninguém vive só de milhões materiais. E os milhões subjetivos? Só a língua da terra vale um milhão bem-contado. Vão tirar de Vavá o seu idioma e quem pagará por isso? As piadas, os palavrões, em outra língua, que graça podem ter? Alguém insistirá no argumento dos milhões. Não importa. Aqui, Vavá está feliz e realizado como um peixinho no seu aquário. Por outro lado, convém aceitar esta verdade recente — o campeão não é apenas um jogador de futebol. É um herói: nenhum clube, nenhum povo tem o direito de vender seus heróis. Nem o herói tem o direito de vender a si mesmo. Amigos, no dia em que deixarmos de prezar os valores gratuitos, vamos cair todos de quatro, todos.
Jornal dos Sports, 26/7/1958
(1) Esta crônica foi publicada originalmente na coluna “Nelson Rodrigues dá bom dia”. (N.E.)
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