O Portal da Copa publica, até o mês de junho, às vésperas da Copa do
Mundo, uma série de crônicas escritas por Nelson Rodrigues entre as
décadas de 1950 e 1970. Os textos foram reunidos no livro “A Pátria de
Chuteiras”, lançado em 9 de dezembro de 2013 pelo ministro do Esporte,
Aldo Rebelo. São 40 crônicas selecionadas em um trabalho de pesquisa de
mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues
para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.
Confira abaixo a vigésima quinta crônica da série: "A realeza de Pelé".
Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o
meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade [Albert]
Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de
Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são
aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de
quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois
bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas
autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear,
se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito
parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer
rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em
derredor.
O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E
Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se
sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um
adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e
piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que
não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do
mundo?” Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu.” Insistiram: — “Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: — “Eu.” Em outro
qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe
no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage, e todos passam a
admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas
pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável
Pelé.
»Confira a íntegra do livro
Vejam
o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e
quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompeia. Sozinho,
liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu
lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo
que o carregue!” De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no
primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer
teria despachado. Pelé, não. Olha para a frente, e o caminho até o gol
está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho.
Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe, ao encalço, ferozmente, o
terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a
ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e
sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais
ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa
estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era
demais driblar Pompeia e encaçapou de maneira genial e inapelável.
Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro
futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de
certeza, de otimismo que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a
sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima
de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus
pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra
sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na
Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os
ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de
ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente, que precisamos.
Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau. Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a Fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.
Manchete Esportiva, 08/03/1958
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