Sem final feliz: a devolução da criança pelo adotante, sob a visão da assistente social

O Brasil tem hoje aproximadamente 40 mil crianças e adolescentes vivendo em abrigos. A violência doméstica, o abandono, a pobreza e a dependência química são um dos principais fatores que levam estas crianças para serviços de acolhimento. Em 2016, o número de adoções foi de 1.226, segundo o Conselho Nacional de Justiça.

A legislação brasileira orienta que a prioridade é a permanência da criança com a família, porém quando ocorre a destituição do poder familiar, o Estado intervêm para garantia dos direitos sociais da criança e esta pode ser encaminhada à adoção.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio do Cadastro Nacional de Adoção (CNA), tem em seus registros aproximadamente sete mil crianças e adolescentes cadastrados, vivendo em situação de abrigo. O cadastro apresenta também 39 mil pretendentes habilitados para adotar estas crianças ou adolescentes.

“O problema é que o número de crianças e adolescentes cadastrados no CNA não corresponde à realidade dos abrigos. Há um descompasso muito grande”, diz Angélica Gomes da Silva, assistente social no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, comarca de Uberaba, que defendeu tese de doutorado pela Unesp de Franca, intitulada: Quando a devolução acontece nos processos de adoção: um estudo a partir das narrativas de assistentes sociais no Tribunal de Justiça de Minas Gerais.

O Cadastro, segundo ela, computa apenas as crianças que já foram destituídas do poder familiar. “Na verdade, temos milhares de crianças que estão vivendo nos abrigos brasileiros e que aguardam decisão judicial para retorno à família de origem ou encaminhamento para adoção”.

Outro dado importante é o número de pretendentes cadastrados no CNA: para cada criança na fila de adoção há cinco famílias interessadas. O impasse, diz a pesquisadora, é que a maioria dos 39 mil pretendentes à adoção desejam uma criança branca, saudável e com menos de cinco anos, diferentemente dos perfis das crianças que vivem nos abrigos brasileiros, que em sua maioria são negros e pardos, em grupos de irmãos, com mais de seis anos de idade e com deficiências físicas e mentais.

Adoção: doses de amor e carinho
“Adoção é um processo de construção de vínculos, como em diversas outras experiências de relações humanas”, diz Angélica. O conflito pode estar presente, pode fazer parte de um percurso necessário no estabelecimento da criança em sua nova família.

A pesquisadora trabalhou em sua tese com as dificuldades enfrentadas pelos assistentes sociais com a devolução da criança e do adolescente. “É preciso que as famílias adotivas compreendam que toda criança e todo adolescente encaminhado para adoção vêm de uma história com marcas bastante dolorosas e difíceis, que precisam ser cuidadas a vida toda”.

Por outro lado, os pais adotivos também podem ter suas feridas, e nos encontros possíveis pela adoção, entre “pais e filhos”, elas se expressam de forma mais clara. A intervenção, diante de problemas, pressupõe especialmente a participação das famílias e a busca por apoio e orientação. “Os profissionais precisam compreender o momento de se aproximar e se afastar, com competência técnica, conhecimento teórico e compromisso ético”.

Devolução: um sonho não realizado
“A devolução não é uma experiência rara, infelizmente está presente no cotidiano das comarcas brasileiras”, relata Angélica. Ela conta que este é um problema que precisa ser reconhecido, debatido e publicizado, pois infelizmente, na atualidade, estes dados não são mensurados, nem tratados com a relevância que exigem.

Para o estudo, Angélica entrevistou cinco assistentes sociais que atuam em comarcas nas regiões sul e do triângulo do Estado de Minas Gerais, que relataram suas experiências com devolução de crianças, nos processos de adoção.

Em sua avaliação, ela identificou que a devolução é realizada e encaminhada para o profissional apenas quando a situação alcança um nível insuportável de conflitos entre os pais adotivos e a criança: “com as pessoas bastante marcadas, sofridas e resistentes às intervenções possíveis e necessárias”, diz.

Uma constatação importante da pesquisa são os problemas que o assistente social encontra ao tratar da devolução junto às outras prioridades do seu trabalho como, as demandas de processos, as estruturas precárias, as equipes reduzidas, a falta de profissionais de psicologia e a forte cobrança e pressão que há na hierarquia do judiciário.

Para a orientadora da pesquisa, Ana Cristina Nassif Soares, professora do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Unesp de Franca, a importância do tema se destaca por haver poucas pesquisas na área, além de ser de extrema relevância, uma vez que afeta diretamente crianças e adolescentes devolvidos, adotantes e profissionais que realizam o processo de adoção.

“Angélica consegue, com muita sensibilidade e firmeza, abordar esta questão a partir de narrativas de assistentes sociais judiciárias que estiveram no cerne do processo, o que dá visibilidade ao sofrimento, às angústias e às inquietações das mesmas”, diz.

De que forma é feito o acolhimento?
O Plano Nacional de Convivência Familiar e Comunitária, aprovado em 2006, pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, passou a distinguir duas modalidades de acolhimento: familiar e institucional.

No acolhimento familiar, a criança ficará com uma família que irá ampará-la por um período e, só será encaminhada, quando houver decisão judicial que decidirá se ela irá retornar para sua família de origem ou entrará para adoção. Neste caso, ela terá mais atenção e será melhor cuidada, explica Angélica: “Nada substitui a experiência de se viver em família”.

Já nas instituições de acolhimento, que podem ser casas comuns - com cuidadoras e auxiliares de serviços gerais - ou instituições maiores, que lembram os antigos orfanatos, geralmente são ofertados serviços bons, bem organizados, onde a criança é bem acolhida.

Por outro lado, podemos encontrar estabelecimentos impróprios, com lugares sujos, espaços em que ocorrem violência, abuso e negligência institucional. “Com o discurso de proteção, estes estabelecimentos configuram-se violadores de direitos fundamentais”, diz.

Conforme relatório atual do CNJ, São Paulo é o Estado que mais acolhe no país. Em suas instituições estão abrigadas 1.602 crianças e adolescentes destituídos do poder familiar e 13.626 sem situação legal definida. Depois de São Paulo, o cadastro de acolhidos registra em segundo e terceiro lugar: Minas Gerais, com 4.987; e Rio de Janeiro, com 4.488.

Quando a devolução acontece
Após a devolução, a criança retorna ao serviço de acolhimento e precisa receber apoio profissional para superar esta vivência, que muitas vezes deixa marcas de sofrimento na criança. Posteriormente, ela poderá ser novamente encaminhada à adoção, “com a esperança de que encontre uma família afetiva e disponível para recebê-la. É preciso acreditar que é possível”, conclui.

A equipe profissional de acompanhamento destes serviços geralmente é formada por assistente social, psicóloga, advogada, pedagoga e administradores.

==> Foto: Divulgação

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