As Forças Armadas constituem convencionalmente um
instrumento de política exterior de um Estado. O principal elemento que
legitima formar, treinar e manter dois mecanismos distintos de emprego
da força – militares e policiais – consiste menos em suas
características operacionais e técnicas, do que em formas diferentes de
resolução de conflito. Do modo em que se constituiu o Estado moderno, o
monopólio do uso da violência, do qual goza, lhe atribui uma dupla
responsabilidade: garantir que o ordenamento jurídico interno funcione
adequadamente, eliminando assim a violência letal como forma legítima de
resolução de conflitos; e defender a unidade política de ameaças a sua
existência, tendo a letalidade, neste caso, como meio plausível. Assim,
as capacidades técnicas e operacionais das Forças Armadas e das policias
estão subordinadas ao processo de legitimação do uso da força, e não o
contrário. Tem-se um instrumento para salvaguardar a integridade física e
moral dos cidadãos, e outro para garantir a existência do Estado.
A clara divisão que se estabelece em termos teóricos, evidentemente, não se observa na atuação e na regulamentação jurídica das instituições castrenses e policiais no Brasil. As Forças Armadas, além das históricas intervenções na política interna, foram, na quase totalidade das constituições nacionais, imbuídas da prerrogativa de garantir a lei, a ordem e os poderes constitucionais. As policias militares, por sua vez, denunciadas pela alta letalidade de suas ações, são, de acordo com o sexto parágrafo do artigo 144 da Constituição de 1988, forças auxiliares do Exército. Deste modo, nota-se a atribuição de uma dupla funcionalidade aos dois instrumentos de força do Estado brasileiro, deixando pouco claro para qual tipo de emprego da violência estes devem ser preparados e mantidos.
A problemática de longa data, ganhou destaque nas últimas semanas devido à crise de segurança pública que se estabeleceu no estado do Espirito Santo, diante do aquartelamento dos policiais militares. Na ocasião, familiares dos policiais, reivindicando melhores condições de trabalho e reajuste salarial, bloquearam o acesso dos batalhões. Frente à onda de violência que tomou o estado, as Forças Armadas foram acionadas, sob a prerrogativa da Garantia da Lei e da Ordem (GLO).
São dois os dispositivos legais através dos quais o instrumento militar é alocado em atividades de segurança pública: o artigo 142 da Constituição Federal; e a Lei Complementar 97/99. O primeiro, atribui às instituições castrenses a função de garantir a lei e a ordem, enquanto a segunda determina que este tipo de atuação deve ocorrer de maneira excepcional, quando o presidente da República, comandante supremo das Forças Armadas, considerar que os instrumentos de segurança pública estão esgotados.
Até o momento, a mobilização das tropas federais, ainda que constante, e não episódica, como determina a Lei Complementar, buscava justificativa na situação de emergência. A novidade surgiu no dia 14/02/17, quando o presidente, Michel Temer, aprovou o envio de um efetivo de 9 mil homens para a cidade do Rio de Janeiro, após o pedido do governador, Luiz Fernando Pezão. O ministro da Defesa, Raul Jungmann, declarou de modo taxativo que a denominada Operação Carioca tem caráter preventivo, uma vez que não há uma crise no policiamento da cidade. Se não se considera que os meios destinados à garantia da segurança pública estão esgotados, pode-se questionar então a validade legal da operação. Para além de uma possível inconsistência jurídica, a declaração de Jungmann expõem a banalização do emprego das Forças Armadas.
Há um amplo espectro de críticas à “policialização” do instrumento militar, como a desprofissionalização das Forças Armadas e o estabelecimento de inimigos internos, legitimando o uso desproporcional da força contra a população civil. No caso aqui em questão, tem-se um elemento particularmente preocupante. Segundo os periódicos, no pedido enviado ao governo federal, Pezão solicitou o deslocamento de tropas para as imediações da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), onde protestos conta medidas de austeridade, que estão em votação, tem resultado em confronto entre manifestantes e a polícia. Jungmann declarou que as tropas não serão enviadas para a Alerj, mas que a atuação das Forças Armadas deve liberar parte do efetivo da Política Militar, que poderá ser deslocado para áreas que se encontrem em situação crítica.
Diante de um quadro em que, o aparato militar do Estado – destinado a lidar com um espaço no qual a violência letal constitui um instrumento aceitável de resolução de conflito – é mobilizado para atuar de forma preventiva na garantia da lei e da ordem interna, é premente um sério debate público acerca da legitimidade do uso da violência.
David Succi Junior é Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp - Unicamp - PUC/SP). Graduado em Relações Internacionais pela Unesp, Câmpus de Franca. Pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) da Unesp.
A clara divisão que se estabelece em termos teóricos, evidentemente, não se observa na atuação e na regulamentação jurídica das instituições castrenses e policiais no Brasil. As Forças Armadas, além das históricas intervenções na política interna, foram, na quase totalidade das constituições nacionais, imbuídas da prerrogativa de garantir a lei, a ordem e os poderes constitucionais. As policias militares, por sua vez, denunciadas pela alta letalidade de suas ações, são, de acordo com o sexto parágrafo do artigo 144 da Constituição de 1988, forças auxiliares do Exército. Deste modo, nota-se a atribuição de uma dupla funcionalidade aos dois instrumentos de força do Estado brasileiro, deixando pouco claro para qual tipo de emprego da violência estes devem ser preparados e mantidos.
A problemática de longa data, ganhou destaque nas últimas semanas devido à crise de segurança pública que se estabeleceu no estado do Espirito Santo, diante do aquartelamento dos policiais militares. Na ocasião, familiares dos policiais, reivindicando melhores condições de trabalho e reajuste salarial, bloquearam o acesso dos batalhões. Frente à onda de violência que tomou o estado, as Forças Armadas foram acionadas, sob a prerrogativa da Garantia da Lei e da Ordem (GLO).
São dois os dispositivos legais através dos quais o instrumento militar é alocado em atividades de segurança pública: o artigo 142 da Constituição Federal; e a Lei Complementar 97/99. O primeiro, atribui às instituições castrenses a função de garantir a lei e a ordem, enquanto a segunda determina que este tipo de atuação deve ocorrer de maneira excepcional, quando o presidente da República, comandante supremo das Forças Armadas, considerar que os instrumentos de segurança pública estão esgotados.
Até o momento, a mobilização das tropas federais, ainda que constante, e não episódica, como determina a Lei Complementar, buscava justificativa na situação de emergência. A novidade surgiu no dia 14/02/17, quando o presidente, Michel Temer, aprovou o envio de um efetivo de 9 mil homens para a cidade do Rio de Janeiro, após o pedido do governador, Luiz Fernando Pezão. O ministro da Defesa, Raul Jungmann, declarou de modo taxativo que a denominada Operação Carioca tem caráter preventivo, uma vez que não há uma crise no policiamento da cidade. Se não se considera que os meios destinados à garantia da segurança pública estão esgotados, pode-se questionar então a validade legal da operação. Para além de uma possível inconsistência jurídica, a declaração de Jungmann expõem a banalização do emprego das Forças Armadas.
Há um amplo espectro de críticas à “policialização” do instrumento militar, como a desprofissionalização das Forças Armadas e o estabelecimento de inimigos internos, legitimando o uso desproporcional da força contra a população civil. No caso aqui em questão, tem-se um elemento particularmente preocupante. Segundo os periódicos, no pedido enviado ao governo federal, Pezão solicitou o deslocamento de tropas para as imediações da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), onde protestos conta medidas de austeridade, que estão em votação, tem resultado em confronto entre manifestantes e a polícia. Jungmann declarou que as tropas não serão enviadas para a Alerj, mas que a atuação das Forças Armadas deve liberar parte do efetivo da Política Militar, que poderá ser deslocado para áreas que se encontrem em situação crítica.
Diante de um quadro em que, o aparato militar do Estado – destinado a lidar com um espaço no qual a violência letal constitui um instrumento aceitável de resolução de conflito – é mobilizado para atuar de forma preventiva na garantia da lei e da ordem interna, é premente um sério debate público acerca da legitimidade do uso da violência.
David Succi Junior é Mestrando em Relações Internacionais pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas (Unesp - Unicamp - PUC/SP). Graduado em Relações Internacionais pela Unesp, Câmpus de Franca. Pesquisador do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (GEDES) da Unesp.
==> Foto: Divulgação
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