O prédio do Centro Cultural Banco do
Brasil (CCBB) Brasília será tomado pelas estranhas figuras criadas por
Patricia Piccinini, um dos grandes destaques da produção contemporânea
australiana. Ao mesmo tempo repulsivos e sedutores, os seres concebidos
pela artista em seu estúdio de Melbourne – que em muito se assemelha a
um espaço de criação de efeitos especiais para o cinema, com seus
ateliês de pele, unha ou cabelo – provocam uma imediata e paradoxal
resposta do público. Se por um lado suas formas causam asco ou repulsa,
sua familiaridade e doçura geram uma empatia quase imediata. Trata-se de
um jogo preciso, que encanta não apenas pelo virtuosismo técnico, mas
sobretudo porque desperta por meio do sensorial uma série de indagações
acerca do mundo contemporâneo, dos efeitos da ciência e dos limites
morais e éticos do ser humano.
De
que maneira a arte, em parceria com a natureza e a ciência, nos faz
entender um pouco mais e melhor sobre nós mesmos? Teria a humanidade
consciência de que se isola de forma ingênua e perigosa daquilo a que
não está acostumada, destruindo o que lhe é estranho? Conhecemos
realmente os efeitos futuros das recentes e profundas manipulações
genéticas? O incômodo provocado por esses monstrengos de silicone
concebidos por Patricia nos mostra sobre nossos próprios sentimentos,
ampliando nossa compreensão sobre questões complexas e delicadas como a
imposição de padrões de beleza, o racismo e a xenofobia. Não à toa
Patricia Piccinini costuma dizer que seu mundo é mais repleto de
perguntas do que de respostas.
“Sou
interessada em descobrir o sentido do que é ser humano no âmbito da
engenharia genética e da biotecnologia, e como essas tecnologias
influenciam a maneira como nos relacionamos com o mundo. O mundo que
crio existe em algum lugar entre o que conhecemos e o que está quase
sobre nós (a imaginação, ou o futuro). Minhas criaturas, apesar de
estranhas e por vezes inquietantes, não são assustadoras. Em vez disso, é
a sua vulnerabilidade que muitas vezes vem à tona. Elas pedem que as
olhemos além de sua estranheza, nos convidando a aceitá-las. Somos
cercados por modificações genéticas escondidas em nossos alimentos e
animais, sem ao menos dar conta! Eu não induzo o visitante a pensar
qualquer coisa sobre engenharia genética, mas pergunto como eles se
sentem frente a essas possibilidades. Trabalho com uma variedade de
materiais e linguagens, de esculturas feitas de silicone e fibra de
vidro a fotografia e vídeo, passando pelo desenho e a pintura”, resume a
artista, cujo trabalho já foi levado a inúmeras galerias ao redor do
mundo e teve destaque nas Bienais de Liverpool, Berlim, Havana e Veneza.
Na edição de 2003 desta última, foi a única representante da Austrália
com a mostra individual We are Family.
Intitulada
ComCiência, a primeira exposição individual de Patricia Piccinini no
Brasil – que fez sua estreia em São Paulo faz um amplo apanhado da
produção da artista e reúne alguns de seus principais trabalhos. Logo na
entrada, no térreo, o espectador se depara com peças icônicas da
artista como Big Mother (uma figura agigantada, que se assemelha a uma
macaca e amamenta um bebê); The Conforter (uma menina toda coberta de
pelos acalenta um pequeno ser, de pele macia e pés fofos como um bebê
humano, mas que tem uma boca agigantada e sem olhos –; ou ainda The
Observer (2010), um curioso menino que observa o mundo de um ponto de
vista privilegiado e perigoso, o alto de uma pilha inclinada de
cadeiras. Qualquer metáfora com o percurso que a exposição propõe ao
espectador não é mera coincidência.
Em
uma das alas da exposição foi criada uma espécie de garagem, na qual
estão reunidas uma série de máquinas antropomorfizadas, uma espécie de
diluição provocativa entre o inorgânico e o orgânico. Em outro módulo
estão organismos absolutamente descolados da realidade, como Sphinx. Mas
todo o centro cultural será tomado pelas bizarras figuras (esculturas,
relevos e desenhos) da artista. Segundo o curador Marcello Dantas, a
proposta foi ativar todas a salas do CCBB como sendo o lugar onde esses
seres vivem, comem, dormem. “É como se você tivesse entrado nesse circo,
nessa casa mal-assombrada”, povoada por criaturas que podem ser
completamente abstratas, absolutamente verossimilhantes, misturas
biologicamente plausíveis, mesclas de diferentes animais ou mutantes
perfeitamente saídos de um filme de ficção científica. Talvez um dos
pontos de partida da artista tenham sido os bichos que ela, nascida em
Serra Leoa em 1965, descobriu ao chegar na Austrália, aos sete anos de
idade. Bastaria citar o ornitorrinco ou o canguru para confirmar o
importante papel desses animais incomuns no imaginário nacional. Como
diz Dantas, “trata-se de um país que tem licença poética para a
invenção”.
O
caminho é repleto de surpresas e subversões de sentido. Reforçando
ainda mais esse universo potente de relações, muitas vezes
contraditórias, foi criado um audioguia que permite aos visitantes ir
além da percepção visual, ouvindo os sons, as respirações e até a
linguagem daquelas criaturas. “A ideia é permitir que se tenha uma ideia
da essência desses personagens”, explica Dantas, que concebeu o sistema
com a colaboração estreita da artista, que costuma dizer que suas
criações têm cheiro de gengibre.
“Trata-se
de uma obra sobre a aceitação”, diz o curador sobre o trabalho de
Patricia, acrescentando que por isso gostaria que fosse uma exposição
popular e que atraísse o público infantil. “As crianças possuem menos
pré-conceitos”, define.
Essa
mistura alquímica entre natureza e tecnologia, que flerta tanto com o
surrealismo e o hiperrealismo – o que explica a aproximação recorrente
feita com o trabalho de outro ilustre artista australiano, o escultor
Ron Mueck –, nos faz questionar sobre nossa semelhança e vínculo com
esses seres. Seríamos nós monstrengos disfuncionais como eles, ou
produziremos algum dia descendentes com esse grau de disfuncionalidade?
Afinal, “genética é história da forma de corpo”, sintetiza Dantas,
lembrando que nosso código genético é uma espécie de narrativa, de ponto
indicativo do nosso passado e do nosso futuro, que carregamos conosco.
Diante
de possibilidades terrivelmente ameaçadoras como essa, não seria
surpreendente pensar a obra de Patricia como profundamente crítica dos
avanços incontrolados da ciência e um tanto desesperançosa. Porém, há na
delicadeza dessas figuras e no afeto que elas despertam algo de
redentor: “seria uma obra pessimista se esses seres não estivessem
repleto de amor”, conclui o curador.
SERVIÇO:
Centro Cultural Banco do Brasil Brasília
SCES, Trecho 02, lote 22
CEP: 70200-002 | Brasília (DF)
Tel.: (61) 3108-7600
Funcionamento: de quarta a segunda, das 9h às 21h.
Entrada gratuita
Classificação indicativa: livre
Até 04 de abril
Curadoria: Marcello Dantas.
==> Foto: Divulgação
2 comments:
Site fantástico, parabéns
Obrigado!!
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