A
pedra atirada na cabeça de uma menina praticante de uma religião
afro-brasileira por pessoas identificadas como evangélicas é um desses
casos-limite que mesmo os acusados de incentivadores deste ódio
manifestaram-se contrários. Afinal, nada mais anti-bíblico do que um
apedrejamento, que o diga a mulher adúltera, salva por Cristo com uma
frase simples e de aplicação universal: Atire a primeira pedra quem não tiver pecado.
Mesmo assim, o fato desperta indignação e preocupação em relação ao momento em que vivemos. Neste sentido, o evento não deve ser lido apenas à luz dos conflitos religiosos. É preciso ampliar o foco e entender o ato como sintoma de afetos sociais mais amplos que são pouco abertos às diferenças, muito voltados sobre si como medida para a vida pública e por vezes agressivos simbólica e concretamente com o que negam.
Isso
porque na conjuntura atual assiste-se a uma concertação entre vetores
que apontam para a contenção, restrição e mesmo retrocesso no plano dos
direitos e das escolhas individuais. Trata-se do que vem sendo nomeado
de “onda conservadora”. Ressalte-se: esta é uma onda que tem quebrado em
várias direções. Algumas religiões fazem parte deste movimento mais
amplo, e no que diz respeito aos evangélicos pentecostais pelo menos
dois pontos são centrais.
O
primeiro refere-se à disputa em torno da moralidade pública relativa a
temas como família, ensino, reprodução humana, sexualidade, gênero,
entre outros. Cabe lembrar que os evangélicos brasileiros são fortemente
influenciados pelas proposições fundamentalistas norte-americanas,
universo do qual a grande maioria deles descende.
Tais
pautas têm sido canalizadas de forma mais contundente no Poder
Legislativo e é algo relativamente recente. A entrada na política
institucional nos anos 1980 visou mais à canalização de recursos para a
rede religiosa do que uma ação contundente no sentido da regulação dos
comportamentos e dos corpos. Contudo, composições recentes da Comissão
de Direitos Humanos e Cidadania da Câmara Federal (historicamente
associada a temas relativos às questões indígenas, agrárias,
imigratórias, de violência etc.) têm pautado o debate em torno das
moralidades e dos comportamentos.
O
segundo ponto refere-se aos atos de iconoclastia, de vilipêndios por
meio de rituais, de constrangimento moral e, apesar de menos frequente,
de violência física. No senso comum, é recorrente alguns comportamentos
mais belicosos dos pentecostais, sobretudo contra as religiões
afro-brasileiras, serem associados ao fundamentalismo islâmico. No
entanto, esta associação não encontra vínculos históricos ou culturais
para se sustentar. A meu ver, é mais profícuo pensar a partir da cultura
de violência existente no país, seja a do Estado seja a dos bandidos.
Recentemente, a Igreja Universal apresentou os Gladiadores do Altar, jovens obreiros que fazem rituais militaristas com uma estética semelhante à do filme Tropa de Elite. A semelhança, no entanto, não se limita à performance. O Bope do Rio de Janeiro conta com policiais evangélicos que formam a Tropa de Louvorenquanto em São Paulo foi criado o grupo PMs de Cristo que diz combater traficantes e policiais corruptos possuídos por demônios.
Além
dos policiais evangélicos que veem sua atividade também como uma missão
religiosa, surgiram recentemente nas favelas do Rio de Janeiro
traficantes de drogas que participam de pequenas igrejas evangélicas. Se
anteriormente os bandidos “fechavam o corpo” nos terreiros
afro-brasileiros, cada vez mais eles têm buscado proteção espiritual nas
orações dos pastores e frequentado rituais nas igrejas. Como
consequência, tais traficantes têm expulsado das favelas os terreiros de
umbanda considerados demoníacos.
Em
todos eles, policiais e bandidos, a demonização é a linguagem pela qual
uma guerra espiritual é vivida. Na verdade, o código da guerra e do
inimigo perpassa a todos. E isto me leva a uma pergunta, meio anedótica
mas nem de todo implausível: se os PMs de Cristo e a Tropa de Louvor
combatem os demônios que agem nos traficantes e nos policiais
corruptos, e se os traficantes evangélicos expulsam os demoníacos
terreiros de umbanda das favelas, o que acontecerá quando aparecer o
primeiro pai de santo evangélico? Ele vai demonizar quem? Talvez o
círculo se feche e alguns evangélicos (tipo Malafaia, Macedo ou
Feliciano) virem os capetas da vez.
Entretanto,
não dá para generalizar os evangélicos a partir destas figuras. Na
última Parada Gay acompanhei um grupo de evangélicos gays que
celebravam sua fé e afirmavam que Cristo é contra a homofobia. Em sua
performance dançaram, cantaram e declararam: "Sou gay e Jesus é meu
pastor". Mas onde estão os bons pastores evangélicos que reprovam o ódio
às religiões afro-brasileiras e a fobia aos gays? Conheço vários, mas
todos juntos, ainda, não têm a visibilidade dos pastores citados acima.
O
fato é que boa parte dos que falam em nome dos evangélicos tem
participado de um movimento mais amplo que trabalha a favor das
restrições dos comportamentos e mesmo da criminalização da população. A
participação de um terço dos deputados da bancada evangélica na bancada
da segurança, entre eles o presidente da Câmara Federal e o próprio
presidente da bancada evangélica, é indício da afinidade de sentido
entre religião e violência do Estado. Violência que encontra sua
legitimidade em sentimentos coletivos de vingança, como este
identificado na quase unanimidade nacional a favor de maior
encarceramento seguindo a lógica da tolerância zero.
Na coletânea intitulada A Intolerância, a antropóloga francesa Françoise Héritier nos oferece uma proposição iluminadora do momento atual: A
intolerância é sempre, essencialmente, a expressão daquilo que é
considerado como que saído de Si, idêntico a Si, que destrói tudo o que
se opõe a essa proeminência absoluta. Isto é bastante visível na
aliança do pentecostal Marcos Feliciano com o católico Jair Bolsonaro na
Comissão de Direitos Humanos e Cidadania, na qual formam uma espécie de
ecumenismo à direita no combate aos “inimigos da sociedade”, por
exemplo, Jean Willys.
Como
dito, a onda conservadora quebra em várias direções e seria necessário
aqui mais espaço para demonstrar em um nível mais profundo, psíquico
mesmo, as afinidades entre o ódio às religiões afro-brasileiras, a fobia
aos gays e a vingança contra o adolescente infrator. Os vetores
conservadores são diversos mas apresentam entre si conexões parciais,
pois todos caminham no mesmo sentido da intolerância que elege inimigos a
serem apedrejados, cerceados e encarcerados. No espírito deste momento
sombrio, o ódio, a fobia e a vingança são as pulsões da violência
daqueles que se consideram os ‘justos’.
*Ronaldo de Almeida é diretor científico do Cebrap e professor de antropologia da Unicamp.
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