Alcoólicos anônimos: uma vitória por dia

No início, é por prazer, por diversão e em ambientes de festas. As doses começam a aumentar. A contagem de taças, tulipas ou copos passa a ser pelo número de garrafas. O consumo social apenas passa a ser um hábito. O gosto da bebida, independente se é destilada ou fermentada, já não faz a diferença. O prazer não está mais em beber. A diversão não é causada pelas confraternizações, muito menos pelo consumo de álcool. O que antes causava alegria passou a ser motivo de briga. As discussões ocorrem entre os amigos, as famílias; dentro de casa, do carro ou na rua. A festa acabou. A luz apagou. O povo, simplesmente, sumiu. Sem a poesia de Drummond, a vida das pessoas que sofrem com o alcoolismo é dura. Uma luta a cada dia. Os alcóolicos anônimos levam consigo o lema: evite o primeiro gole. Uma gota significa tentação, mas também pode significar o retrocesso. A contagem muda. Os dias de abstinência são contados com mérito. Os meses, comemorados com orgulho. A reportagem participou de reuniões dos Alcóolicos Anônimos em Brasília e conheceu histórias de moradores e familiares no Distrito Federal que quase perderam tudo. Tratam cada minuto de abstinência como vitória. Mas todos sabem: a batalha não tem fim.

Um homem que não quis ser identificado disse que era comum tentar se controlar. Ele contou que entrava em um bar, mas não queria beber. Era comum pedir apenas uma bebida e que não passaria disso. Ele afirmou que não via mal algum. Era apenas uma dose. Mas a matemática não era exata. Nessa soma, era comum errar a conta. “Uma unidade para mim não era uma. Uma unidade era pelo menos oito copos de vodca”. A preferência pelas bebidas destiladas se deu desde cedo. O rapaz de 58 anos alegou que não gostava do sabor da bebida em si, mas tinha a necessidade de consumir. Esse hábito aumentou e atrapalhou o convívio familiar. “Eu tenho três filhas lindas, duas casadas. Tenho uma neta também. Só vi uma vez. É que tinha que ficar sóbrio. Aí não vi. Também perdi o casamento das minhas filhas, a formatura.”

O homem é advogado. Ele afirmou que perdeu toda a boa reputação. “Eu manipulei muito. Iludi e enganei muita gente”. Há seis meses sóbrio, busca ter forças para continuar sobreviver sem precisar do consumo. Ele acrescentou que no dia-a-dia evita os caminhos que cruzam os bares da capital. O advogado disse que já chegou a ser preso por dirigir alcoolizado. Segundo ele, já esteve até mesmo perto da morte. “Ficava três dias sem tomar banho. Não escovava os dentes. Eu não tinha cáries. Cárie é germe, né? Acho que até os germes tinham nojo (risos). Era o álcool. Mata tudo; quase me matou”. 

Vício 

Outro homem que não quis ser identificado também tenta controlar a abstinência da bebida. O consumo excessivo de álcool é devastador. A falta da substância é capaz de provocar reações caracterizadas pelo vício. “Eu ficava alguns dias sem beber e já sentia o gosto da cerveja, o cheiro.” Ele conta os meses sem o álcool com satisfação. Entretanto, sabe que é uma luta diária com desafios constantes. O homem alegou que recentemente entrou em um bar com o objetivo de comprar um churrasquinho para a esposa. De acordo com o rapaz, ao entrar no local já conseguiu sentir o gosto do álcool, da cevada na boca. “Saí de lá correndo. Falei que não pude comprar. Eu sou fraco para o álcool”, disse.

Outro homem – também completando seis meses de abstinência – disse preferir as bebidas destiladas, principalmente, o uísqueDe acordo com ele, era comum se isolar para poder apreciar a bebida. Não se importava com a companhia ou com o horário. “Eu ligava o carro, colocava uma música, abria uma garrafa de whisky e ficava lá. Sozinho”, explicou.

Ele tem três filhos. A filha mais velha disse que foi quem percebeu o vício do pai. Ela contou que era comum sentir raiva da situação. “Seis horas da manhã, eu ia para a escola e meu pai já ia pegar gelo para por na bebida… Eu que percebi que ele era alcóolico. Eu tinha 15 anos”.

A estudante disse que foi procurar ajuda familiar em um grupo denominado Alanon, que atende prioritariamente familiares das vítimas da doença. A filha disse que foi complicado para o pai aceitar o alcoolismo. Segundo ela, ele já tinha sido internado, mas que as experiências tinham sido frustradas após algum tempo. “A gente internou meu pai umas três vezes. Na última, ele saiu da internação e foi direto beber”, contou. 

Influências 

O estímulo para começar a beber pode surgir em toda parte. Uma mulher vítima do alcoolismo disse que começou por causa do irmão. A devoção era tão grande que costumava imitar o que ele fazia. Com os anos, ela percebeu que ele era alcóolico. Ao tentar buscar ajuda a ele identificou em si mesma a doença. Ele morreu vítima do álcool. Ela já está há mais de dois anos sem ingerir bebidas alcóolicas.

Segundo especialistas, é comum que o convívio familiar e até mesmo a pressão social de um grupo estimulem o consumo. De acordo com a professora de psicologia e coordenadora do projeto interdisciplinar de saúde, Tânia Inessa de Rezende, não é possível diagnosticar uma causa apenas para o consumo excessivo de álcool. A psicóloga alegou que são no mínimo três fatores: contexto, substância e pessoa.

A professora acrescentou que há um preconceito no Brasil em relação ao alcoolismo. De acordo com Tânia Rezende, a cultura brasileira atribui à força de vontade como suficiente para acabar com o consumo de álcool entre as pessoas. “Há todo um sofrimento no sujeito por ter feito o uso, por não conseguir evitar as perdas relacionais”, alegou. 

Consequências 

Outro homem dos alcóolicos anônimos disse que era extremamente doloroso conviver com o vício. Ele disse que começou a ver a rejeição da família e que por muito tempo não sabia o que fazer. “Pedia a Deus todos os dias: por favor, me faça parar… Já tentei cometer suicídio”. Ele acrescentou que foi a filha com 13 anos ao dizer que ele “fedia” ao álcool que o motivou a tentar parar de uma vez com o consumo.

Uma mulher vítima do alcoolismo disse que o maior problema era o vinho. Ela alegou que o álcool da uva dominava a cabeça e a rotina era em função da bebida que viria a consumir. “Trabalhava em uma casa. Tinham dias que deixava a comida queimar para poder ir mais cedo pro bar”, confessou. 

Danos 

Os alcóolicos anônimos estimam que cerca de 13% da população morre em decorrência do consumo de álcool no Brasil. De acordo com estudo feito pelo médico Cláudio Leite, é possível estimar que por volta de 20 milhões de brasileiros sejam vítimas do alcoolismo. O consumo de álcool ainda é o responsável por 30% das internações em hospitais gerais e 50% em casos psiquiátricos.

A psicóloga Tânia Rezende disse que trabalha com a política da redução de danos com as vítimas de alcoolismo. Um pouquinho de cada vez. Ela acredita que a política de “evitar o primeiro gole” do A.A pode não ser eficaz já que afasta algumas pessoas que se considerem incapazes de restringir totalmente o consumo de bebidas.

Para muitos, a luta diária contra o vício é a única solução. Com o lema “um dia de cada vez”, os alcóolicos anônimos de Brasília tentam viver longe do vício. Um dos frequentadores do A.A que já está sem consumir a droga há mais de 30 anos afirmou que não importa o tempo que fica sem ingerir o álcool, mas a disposição de permanecer por mais tempo. “Um cara pode estar há anos na luta. Pode ser um ‘matusalém’, mas em uma fração de segundo pode por tudo a perder. A nossa luta não é contra o tempo. Só queremos mais 24 horas.” 

Jade Abreu

==> Foto: Fernanda Roza

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