Em
uma entrevista concedida em meados de janeiro ao Financial Times, o
ministro Joaquim Levy gerou controvérsia ao argumentar que as regras de
concessão do seguro-desemprego no Brasil estavam “completamente
ultrapassadas”. Isso explicaria, segundo o ministro, o fato de que,
diante da “menor taxa de desemprego da história”, os gastos com o
benefício continuaram crescendo. Dessa maneira, Levy buscava justificar
as mudanças nas regras implementadas pelo governo através da medida
provisória 665, ainda em dezembro do ano passado.
Essas
mudanças já vinham sendo cogitadas pelo Ministério da Fazenda desde o
começo de 2014, mas vieram à tona recentemente como parte do ajuste
fiscal proposto pelo atual ministro. Independentemente do que se pense
sobre o ajuste em si, vale refletir se as regras do seguro-desemprego
deveriam ser alteradas. De fato, à primeira vista, parece curioso que a
queda do desemprego seja acompanhada por um aumento da concessão do
seguro-desemprego, uma vez que a primeira supostamente reduziria o
número de potenciais beneficiários. Além disso, essa dinâmica dos gastos
com o benefício dificulta que a política fiscal cumpra automaticamente o
papel de atenuar as flutuações econômicas. Os economistas chamam de
estabilizadores automáticos os gastos e as receitas do governo que
tendem a se comportar de maneira anticíclica e, assim, a compensar a
volatilidade dos gastos do setor privado.
O
seguro-desemprego é justamente um dos gastos que cumpriria esse papel.
Quando a economia está desaquecida, o número de desempregados aumenta e o
governo eleva seus gastos com o benefício, compensando pelo menos
parcialmente a queda do consumo que acompanharia o aumento do
desemprego. Sem essa compensação, o consumo menor reduziria as vendas
das empresas, que por sua vez reduziriam a produção e poderiam até
demitir ainda mais funcionários. A queda da atividade econômica tenderia
a ser mais acentuada.
O
mesmo acontece na outra fase do ciclo econômico. Com a economia
aquecida, reduz-se o número de desempregados e caem os gastos do governo
com o seguro-desemprego. Essa queda puxa para baixo os gastos do
governo no momento em que os gastos das famílias e das empresas estão se
elevando, mais uma vez atenuando a flutuação da economia.
As
receitas tributárias cumprem um papel semelhante. No período de alta, o
aumento das transações econômicas eleva a arrecadação de impostos mais
rapidamente do que os gastos do governo, reduzindo assim a demanda
agregada. No período de baixa, por sua vez, a queda da arrecadação tende
a ser maior do que a dos gastos, levando o governo a atenuar a queda da
demanda.
Seria
desejável que a política fiscal funcionasse dessa maneira, mas muitas
vezes a realidade econômica é mais complexa do que supõem as formulações
teóricas. A operação de tais estabilizadores automáticos tem como um de
seus pressupostos uma elevada correlação entre a atividade econômica e o
nível de emprego, o que os economistas chamam de lei de Okun. Mesmo nos
países ricos, já há algum tempo aponta-se que essa correlação está se
tornando menor. O que torna menos eficaz os estabilizadores automáticos.
A
questão brasileira, no entanto, é de outra natureza. Como apenas
aqueles que foram demitidos de um emprego formal, com carteira assinada,
têm direito ao seguro-desemprego, o número de concessões do benefício
não depende apenas do nível do desemprego, mas também da maior ou menor
formalização do mercado de trabalho. Felizmente, na última década, a
proporção de trabalhadores com contratos formais subiu de pouco mais da
metade para cerca de dois terços do total de empregados, reduzindo
significativamente a proporção daqueles que sequer gozam dos direitos
trabalhistas básicos.
Desse
modo, mesmo com a queda da taxa de desemprego, o aumento da
formalização aumentou o número de potenciais beneficiários do
seguro-desemprego e resultou assim no movimento paralelo, apenas
aparentemente contraditório, do nível de emprego e dos gastos com o
benefício. A política de valorização do salário mínimo, por sua vez,
elevando o valor pago como seguro-desemprego, atuou na mesma direção.
O
economista Naercio Menezes Filho já vinha apontando para essa questão
há cerca de um ano. Mas a implicação que ele extraía da situação era a
seguinte: “A alta dos gastos é uma decorrência normal do aumento do
mínimo e da formalização, que, na verdade, são coisas boas. Então o
governo vai ter que conviver com isso.” Seria uma excelente oportunidade
para se aprofundar o debate público sobre a política fiscal, discutindo
fontes de receitas que pudessem financiar a rede de proteção social em
uma economia que aos poucos reduzia a chaga da informalidade.
Além
disso, para não se abrir mão simplesmente dos estabilizadores
automáticos, seria possível discutir alterações do sistema tributário
que aprofundassem o seu caráter anticíclico, compensando a dinâmica dos
gastos. Uma maior progressividade e uma maior incidência de impostos
sobre a renda poderiam apontar nessa direção. E são, de qualquer
maneira, mudanças urgentes no Brasil, para se aprofundar a redução das
desigualdades. Isso sem falar das possíveis mudanças na composição do
mercado de trabalho brasileiro, aumentando a proporção de empregos que
requerem maior qualificação e consequentemente diminuindo a
rotatividade. O que teria o resultado de diminuir a necessidade do
seguro-desemprego.
Tudo
isso seria um ponto de partida promissor para um debate público que
levasse a sério as relações entre a seguridade social, as contas
públicas e seus efeitos macroeconômicos. Mas, pelo menos até agora, o
governo tem se furtado a esse debate, submetendo as regras do
seguro-desemprego às imposições do ajuste fiscal. Ora utiliza a retórica
vazia de que as regras são ultrapassadas e contém distorções, ora
enfatiza os bilhões de reais anuais que podem ser poupados com as novas
regras.
O
problema é que as perspectivas para o mercado de trabalho, para os
próximos anos, são sombrias e as novas regras, caso aprovadas pelo
Congresso, devem deixar muitos trabalhadores descobertos. Especialmente
os mais jovens, que recém entraram no mercado de trabalho e que poderiam
pedir o benefício, em caso de demissão, pela primeira vez. Antes, seis
meses de trabalho formal conferiam o direito ao seguro-desemprego para a
pessoa que foi demitida. Com as novas regras, no caso da primeira
solicitação do benefício, é necessário ter trabalhado com carteira
assinada por 18 meses nos dois anos anteriores à demissão.
Não
deixa de ser apropriado que a mencionada entrevista ao Financial Times
tenha ocorrido durante a reunião do Fórum Econômico Mundial em Davos,
onde o apego à teoria econômica convencional consegue se blindar das
complicações impostas pela realidade social. Segundo o jornal, era
provável que as declarações de Levy seriam “calorosamente recebidas”
pelo empresários e banqueiros presentes.
Mas,
por mais que a ideologia por trás do ajuste fiscal disponha de força
surpreendente, a retirada de direitos sociais nunca é feita sem
resistência. Não apenas as centrais sindicais têm se insurgido contra as
mudanças, como o próprio Partido dos Trabalhadores têm defendido a
necessidade de se abrir a negociação a respeito delas. E os deputados
federais fizeram centenas de emendas à medida provisória, o que não
deixa de ser uma oportunidade para reabrir o debate e quiçá colocá-lo em
um contexto mais amplo.
Fernando
Rugitsky (pesquisador do Núcleo Direito e Democracia do Cebrap e
professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da
Universidade de São Paulo (FEA-USP)).
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