O portal do Ministério do Esporte publica até o mês de junho, às
vésperas da Copa do Mundo, uma série de crônicas escritas por Nelson
Rodrigues entre as décadas de 1950 e 1970. Os textos foram publicados no
livro “A Pátria de Chuteiras”, lançado em 9 de dezembro pelo ministro
do Esporte, Aldo Rebelo.
São 40 crônicas selecionadas pelo próprio ministro em um trabalho de pesquisa de mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.
Confira abaixo a 29ª crônica da série: “O belo milagre das vaias”. O site do ministério publica dois textos por semana, aos domingos e às quintas-feiras.
São 40 crônicas selecionadas pelo próprio ministro em um trabalho de pesquisa de mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.
Confira abaixo a 29ª crônica da série: “O belo milagre das vaias”. O site do ministério publica dois textos por semana, aos domingos e às quintas-feiras.
“Quem quer que tenha um mínimo de isenção, de objetividade, de apreço aos fatos sabe que o futebol brasileiro é o melhor do mundo. Não sou eu que o digo, mas o óbvio, sim, o óbvio ululante.”
O belo milagre das vaias (1)
O escrete parte hoje. Termina o seu exílio e, se não ouviram bem,
repito: — o seu exílio era o Brasil. Os nossos jogadores são tratados
como se fossem estrangeiros. Ou pior. Porque os estrangeiros merecem,
não raro, uma polidez convencional, sim, um mínimo de cerimônia. Vocês
viram, não viram, Brasil x Inglaterra?
“Não somos os melhores”, afirma um cronista machadiano. E, não sendo os
melhores, e sendo os ingleses, sim, nós os derrotamos. Como se não
bastasse a vitória brasileira, ainda infligimos aos campeões do mundo um
ignominioso olé. Mas eis o que eu queria dizer: — no segundo tempo, um
dos visitantes fez uma coisa que, em futebol, é a vergonha inapelável e
eterna: — atrasou do meio de campo. Ao meu lado, na tribuna de imprensa,
o botafoguense Serginho explodia em arroubos: — “Como eles atrasam bem!
Com que tranquilidade!”
Por aí se vê que admiramos mais os defeitos ingleses do que as virtudes
brasileiras. Conversei com um dos jogadores do escrete e ele abriu-me a
alma, de par em par. Contou-me que, jogando sob uma cúpula de vaias,
não era um brasileiro a jogar para brasileiros. Não e nunca. Tinha a
sensação de que era um brasileiro a jogar para javanês, tirolês,
congolês, tibetano, caucasiano e birmanês.
De brasileiros, a maioria dos assistentes só tinha o palavrão. Era,
sim, o palavrão, rugido no idioma de Camões, era o palavrão, repito, que
localizava o Morumbi no Brasil. E disse mais o pobre craque. Como se
não bastassem as vaias de boca, sofria também as vaias impressas. Os
jornais, em sua maioria, não tinham uma palavra solidária, amiga,
fraterna. O escrete era negado de alto a baixo, isto é, a partir da
manchete.
O mal-amado sente-se hostilizado até pelas paredes, pelos edifícios,
pela paisagem. E ele, não raro, começou a sofrer de mania de
perseguição. Passou pelo morro da Viúva, achou que o Pão de Açúcar
tinha-lhe horror; que o Corcovado, idem. De outra vez, sentiu-se
mal-querido até pelo poente do Leblon. Disse-me várias vezes,
obsessivamente, o jogador: — “Precisamos sair daqui! Precisamos ir
embora!”
Ouvi em silêncio o craque patrício e, sem nada dizer, dei-lhe toda a
razão. Perguntará o leitor, em sua espessa ingenuidade: — “O brasileiro
não gosta do brasileiro?” Exatamente: — o brasileiro não gosta do
brasileiro. Ou por outra: — o subdesenvolvido não gosta do
subdesenvolvido. Não temos sotaque, eis o mal, não temos sotaque. Ainda
agora, no Morumbi, jogamos com a Bulgária (2). Embora entre os búlgaros
existissem carecas, pais de família, que fez a nossa crônica? Na
hipótese de uma vitória nacional, passaram a dizer que os adversários
eram infanto-juvenis do seu país. E se, porventura, ganhássemos de 17 x
0, diriam as manchetes: — “Brasil ganha do berçário búlgaro!”
Não sei se vocês se lembram de uma passagem que contei, aqui mesmo,
nesta coluna. Era o caso de um patrício meu que assim se apresentava nas
esquinas, botecos e retretas: — “Chegou o quadrúpede!” Fazia uma volta
no local e dava outro berro: — “Sou um quadrúpede de 28 patas!” Era esse
o seu triunfal cartão de visitas. Ligava para a namorada e começava
assim: — “É o quadrúpede!”
Lembrei-me desse conhecido que assim se aviltava ao ouvir uma
mesa-redonda numa das nossas emissoras. O assunto era o escrete. Ora, o
escrete é feito à nossa imagem. E os cronistas reunidos não fizeram outra
coisa senão cuspir, como Narciso às avessas, na própria imagem. Negaram
a seleção, negaram o jogador, negaram o técnico, negaram o preparador,
negaram o médico, negaram tudo. Justo seria que terminassem assim: — “E,
agora, com licença, porque vamos urrar no bosque mais próximo!”
Os brasileiros empataram com os carecas da Bulgária por um escore que
humilha os dois lados: — 0 x 0. Mas o resultado em nada influiu. A vaia
começou antes do jogo, continuou durante o jogo e depois do jogo. Mas se
me perguntarem quem empatou com os búlgaros, eu diria: — a antitorcida.
Uma multidão que só vaia não pode chamar-se a si mesma de torcida nem
tem o direito de exigir vitória.
O que fizeram com Paulo Cézar é indesculpável. Ele não era nem culpado
de estar ali e, repito, estava ali porque o escalaram. Setenta, ou
oitenta, ou noventa mil sujeitos contra um só. Não se conhece outro
brasileiro tão humilhado. A vaia é um prazo. Dura um minuto, dois, três.
Vaia é esforço, e não temos, como os ingleses, a saúde e a resistência
de uma vaca premiada. Pois bem. A vaia que trucidou Paulo Cézar durou
noventa minutos.
Digo noventa minutos e já retifico: — mais. Mais, porque começou antes
do jogo. A aluna de psicologia da PUC, que entende nossos sentimentos,
dizia-me: — “Só o ódio sustenta uma vaia de noventa minutos.” Aí está: —
só o ódio. E seria lícito dizer-se que Paulo Cézar foi linchado,
fisicamente linchado, por uma vaia.
Há outra observação que eu desejaria fazer. A vaia contra um atinge e
ofende os demais, inclusive adversários. Claro, pois a vaia não tem nome
e endereço como os envelopes. Os destinatários eram os 22 jogadores e
mais os reservas, de ambos os lados. Mas volto à mesa-redonda da TV.
Houve pouquíssimas exceções; e uma delas, a mais veemente, a mais
otimista foi a do “Marinheiro Sueco” (3). Vibrante de justiça e de
procela, tratou de defender o maravilhoso craque do Brasil.
Graças a Deus o escrete parte. O que nem todos percebem é que o time
nacional leva um maravilhoso trunfo. No México, ele se sentirá muito
menos estrangeiro do que aqui. E estará protegido pela distância.
Acreditem que a distância será a nossa ressurreição. Se me perguntarem o
que deverá fazer a seleção para ganhar a Copa, direi, singelamente: —
“Não nos ler.” Sei que as nossas crônicas vão aparecer, por lá, como
abutres impressos. Não importa. O que interessa é fugir da feia e cava
depressão que dos nossos textos emana.
Quando o jato subir, o escrete assumirá a sua verdadeira dimensão. Cada
cronista há de ter uma palavra final para o time nacional. Já vimos que
um dos colegas escreveu, a título de juízo final: — “Não somos os
melhores.” Esse tom de catástrofe é de quase toda a imprensa brasileira.
Mas não é, repito, o meu tom. Dirão vocês que adoto, diante da Jules
Rimet, uma posição romântica. Nego. Justamente porque sou realista é que
sinto, inevitável, fatal, a vitória brasileira.
Os pessimistas são os alienados. Por exemplo: — o ilustre cronista diz
que data de 66 o ocaso do nosso futebol. Quem fala assim é, obviamente,
um ressentido contra os fatos. Ele não os aceita e parece dizer: — “Se
os fatos não confirmam o que escrevo, pior para os fatos.” Quem quer que
tenha um mínimo de isenção, de objetividade, de apreço aos fatos sabe
que o futebol brasileiro é o melhor do mundo. Não sou eu que o digo, mas
o óbvio, sim, o óbvio ululante.
Seremos campeões de 70, conquistaremos para sempre o caneco, porque
somos melhores. Mas isso seria pouco. Além de melhores, levamos para o
México as vaias ainda não cicatrizadas. De vez em quando, eu relembro o
que acontecia com o “Tigre da Abolição”. Nos comícios, (José do)
Patrocínio começava gelado de pusilanimidade. Era preciso que os amigos,
no meio da multidão, o chamassem de “negro”, “negro”, “negro” e
“negro”. E a humilhação racial o potencializava. Dizia então coisas como
aquela: — “Sou negro, sim! Deus deu-me sangue de Otelo para ter ciúmes
da minha pátria!”
Com o escrete, já começa o belo milagre das vaias. Foi milagre o
segundo tempo de Brasil x Áustria. Aquela bola que Pelé passou de
calcanhar ou o gol de Rivellino, cada jogada era um momento de
eternidade do futebol. Vou ao aeroporto dizer aos nossos jogadores: —
“Vocês já são campeões do mundo.”
O Globo, 1/5/1970
(1) Esta crônica foi publicada originalmente na coluna “As confissões de Nelson Rodrigues”. (N.E.)
(2) Brasil 0 x 0 Bulgária, 26/4/1970, no Morumbi. Brasil 1 x 0
Áustria, 29/4/1970, no Estádio Mário Filho. Últimos amistosos antes do
embarque para a Copa do México. (N.E.)
(3) Apelido de Hans Henningsen, jornalista espanhol e companheiro
de Nelson Rodrigues na mesa-redonda Grande resenha Facit, da TV Globo.


0 comments:
Postar um comentário