O portal do Ministério do Esporte publica até o mês de junho, às
vésperas da Copa do Mundo, uma série de crônicas escritas por Nelson
Rodrigues entre as décadas de 1950 e 1970. Os textos foram publicados no
livro “A Pátria de Chuteiras”, lançado em 9 de dezembro pelo ministro
do Esporte, Aldo Rebelo.
São 40 crônicas selecionadas pelo próprio ministro em um trabalho de pesquisa de mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.
Confira abaixo a quarta crônica da série: “A piada imortal”. O site do ministério vai publicar dois textos por semana, aos domingos e às quintas-feiras.
"Já descobrimos o Brasil e não todo o Brasil. Ainda há muito Brasil para descobrir. Não há de ser num relance, num vago e distraído olhar, que vamos sentir todo o Brasil. Este país é uma descoberta contínua e deslumbrante."
A piada imortal (1)
Amigos, eu ando falando muito do Brasil. E muita gente já rosna, com tédio e irritação: — “Você está descobrindo o Brasil?” É exato. Estou, sim, estou descobrindo o Brasil. Eis que, de repente, cada um de nós, cada um dos setenta milhões de brasileiros passa a ser um Pedro Álvares Cabral.
Já descobrimos o Brasil e não todo o Brasil. Ainda há muito Brasil para descobrir. Não há de ser num relance, num vago e distraído olhar, que vamos sentir todo o Brasil. Este país é uma descoberta contínua e deslumbrante. E justiça se faça ao escrete: — é ele que está promovendo, quem está anunciando o Brasil.
A princípio, o sujeito pode pensar que o escrete revelou o Brasil para o mundo. Isso também. Todavia, o mais importante e o mais patético é a descoberta do Brasil para os próprios brasileiros. Pergunto: — o que sabemos nós do Brasil? Pouco ou, mesmo, nada. A partir de 58, o Brasil começou a aparecer aos nossos olhos.
Digo mais: — foi o escrete que ensinou o brasileiro a conhecer-se a si mesmo. Tínhamos uma informação falsa a nosso respeito. Sempre me lembro de um amigo meu que era um bem, um símbolo nacional. Exuberante como um italiano de Hollywood, um italiano de anedota, o sujeito tinha o gosto do berro e do gesto largo. Se via um vago conhecido, ele abria os braços até o teto e se arremessava com a efusão de um amigo de infância. Tipo gozadíssimo. E o Fulano costumava dizer, aos uivos: — “Eu sou um quadrúpede!” E para evitar dúvidas, ampliava: — “Eu sou um quadrúpede de 28 patas!”
Esta autocrítica jocunda e feroz era o que todos nós fazíamos. O sujeito, aqui, não acreditava nem nos outros, nem em si mesmo. E aquele que se nega está, ao mesmo tempo, negando a própria terra. Quando dissemos: — “Eu sou uma besta!” — estamos vendo bestas por toda parte. Não havia nenhum ufanismo no Brasil. Em absoluto. Como o meu amigo citado, cada um de nós era um Narciso às avessas, que cuspisse na própria imagem.
Em 58, o escrete ainda embarcou desconfiado. Mas já uma dúvida instalava-se em nosso espírito. O sujeito já não sabia se era ou não uma besta chapada ou, na melhor das hipóteses, uma semibesta. A campanha de 58 viria clarificar o problema. Chegamos na Suécia, ainda perplexos. Vencemos a Áustria e empatamos com a Inglaterra. Vem, finalmente, o jogo com a Rússia.
Eu vou dizer o momento exato em que se inaugurou o verdadeiro Brasil. Foi após o hino nacional brasileiro. Os jogadores ainda estavam perfilados e trêmulos. A Rússia seria uma prova crucial. Mais do que nunca dava em cada jogador o dilema: — “Ser uma besta ou não ser uma besta?” E, então, soou, naquele escrete contraído, a voz de Garrincha. Com a sua candura triunfal, dizia o Mané para o Nilton Santos: — “Aquele bandeirinha tem a cara do ‘seu’ Carlito!” Houve, então, o riso incoercível, total. Foi o bastante. O escrete tomou-se de uma nova e feroz potencialidade. E da piada de Garrincha partiu para a vitória.
Ali, começava o verdadeiro Brasil. Ninguém sabe, mas foi uma piada que derrotou a grande, a colossal, a imbatível Rússia. A mesma piada deu ao brasileiro a sensação da própria grandeza. Com um quase pânico, o homem do Brasil percebeu que era genial.
Jornal dos Sports, 27/5/1962
(1) Esta crônica foi publicada originalmente na coluna “Nelson Rodrigues dá bom dia”. (N.E.)
São 40 crônicas selecionadas pelo próprio ministro em um trabalho de pesquisa de mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.
Confira abaixo a quarta crônica da série: “A piada imortal”. O site do ministério vai publicar dois textos por semana, aos domingos e às quintas-feiras.
"Já descobrimos o Brasil e não todo o Brasil. Ainda há muito Brasil para descobrir. Não há de ser num relance, num vago e distraído olhar, que vamos sentir todo o Brasil. Este país é uma descoberta contínua e deslumbrante."
A piada imortal (1)
Amigos, eu ando falando muito do Brasil. E muita gente já rosna, com tédio e irritação: — “Você está descobrindo o Brasil?” É exato. Estou, sim, estou descobrindo o Brasil. Eis que, de repente, cada um de nós, cada um dos setenta milhões de brasileiros passa a ser um Pedro Álvares Cabral.
Já descobrimos o Brasil e não todo o Brasil. Ainda há muito Brasil para descobrir. Não há de ser num relance, num vago e distraído olhar, que vamos sentir todo o Brasil. Este país é uma descoberta contínua e deslumbrante. E justiça se faça ao escrete: — é ele que está promovendo, quem está anunciando o Brasil.
A princípio, o sujeito pode pensar que o escrete revelou o Brasil para o mundo. Isso também. Todavia, o mais importante e o mais patético é a descoberta do Brasil para os próprios brasileiros. Pergunto: — o que sabemos nós do Brasil? Pouco ou, mesmo, nada. A partir de 58, o Brasil começou a aparecer aos nossos olhos.
Digo mais: — foi o escrete que ensinou o brasileiro a conhecer-se a si mesmo. Tínhamos uma informação falsa a nosso respeito. Sempre me lembro de um amigo meu que era um bem, um símbolo nacional. Exuberante como um italiano de Hollywood, um italiano de anedota, o sujeito tinha o gosto do berro e do gesto largo. Se via um vago conhecido, ele abria os braços até o teto e se arremessava com a efusão de um amigo de infância. Tipo gozadíssimo. E o Fulano costumava dizer, aos uivos: — “Eu sou um quadrúpede!” E para evitar dúvidas, ampliava: — “Eu sou um quadrúpede de 28 patas!”
Esta autocrítica jocunda e feroz era o que todos nós fazíamos. O sujeito, aqui, não acreditava nem nos outros, nem em si mesmo. E aquele que se nega está, ao mesmo tempo, negando a própria terra. Quando dissemos: — “Eu sou uma besta!” — estamos vendo bestas por toda parte. Não havia nenhum ufanismo no Brasil. Em absoluto. Como o meu amigo citado, cada um de nós era um Narciso às avessas, que cuspisse na própria imagem.
Em 58, o escrete ainda embarcou desconfiado. Mas já uma dúvida instalava-se em nosso espírito. O sujeito já não sabia se era ou não uma besta chapada ou, na melhor das hipóteses, uma semibesta. A campanha de 58 viria clarificar o problema. Chegamos na Suécia, ainda perplexos. Vencemos a Áustria e empatamos com a Inglaterra. Vem, finalmente, o jogo com a Rússia.
Eu vou dizer o momento exato em que se inaugurou o verdadeiro Brasil. Foi após o hino nacional brasileiro. Os jogadores ainda estavam perfilados e trêmulos. A Rússia seria uma prova crucial. Mais do que nunca dava em cada jogador o dilema: — “Ser uma besta ou não ser uma besta?” E, então, soou, naquele escrete contraído, a voz de Garrincha. Com a sua candura triunfal, dizia o Mané para o Nilton Santos: — “Aquele bandeirinha tem a cara do ‘seu’ Carlito!” Houve, então, o riso incoercível, total. Foi o bastante. O escrete tomou-se de uma nova e feroz potencialidade. E da piada de Garrincha partiu para a vitória.
Ali, começava o verdadeiro Brasil. Ninguém sabe, mas foi uma piada que derrotou a grande, a colossal, a imbatível Rússia. A mesma piada deu ao brasileiro a sensação da própria grandeza. Com um quase pânico, o homem do Brasil percebeu que era genial.
Jornal dos Sports, 27/5/1962
(1) Esta crônica foi publicada originalmente na coluna “Nelson Rodrigues dá bom dia”. (N.E.)
![](http://starcopos.com.br/esportecultura/dalton.png)
![](http://starcopos.com.br/esportecultura/linha_autor.png)
0 comments:
Postar um comentário