A escuta telúrica, as raízes populares e expressões vitais, presentes na obra de Portinari, mostram-se, da mesma forma, nos trabalhos do grupo Matizes Dumont, possibilitando uma releitura contemporânea do mestre modernista. A luta pelos valores sociais e humanos é comum a ambos os projetos, que convergem para a função determinante do sensível na construção da paz. Assim, os artistas em pauta evidenciam no seu fazer estético o alcance do sentimento de dignidade por meio da arte, em que a contemplação do mundo com olhar sensível estabelece uma perspectiva solidária, capaz de permitir ao observador o ato de colocar-se no lugar da dor e da alegria do outro. Esse mesmo olhar, sensibilizado com a beleza miúda, cotidiana e próxima é um dado revelador de humanidade, isto é, dos valores que permitem o reconhecimento da distinção do ser humano em relação aos demais seres vivos.
Os painéis da Paz configuram os afazeres cotidianos como a identidade da paz. Tal o objetivo do pintor, opondo os ruídos da vida ao silêncio da guerra, que suspende a existência comum. Reafirmar a existência comum será o principal traço estético do Matizes Dumont, que traz para seus bordados a riqueza e força do dia-a-dia; expõe à apreciação pública a delicadeza da vida doméstica e o espaço feminino.
O pintor de Brodoski valoriza as figuras de sua terra, consideradas miúdas pelo senso comum. As bordadeiras de Pirapora revitalizam a arte do bordado, por muito tempo desvalorizada, em função de ser exercício do feminino. Se o pintor se valeu do traço lírico e expressionista, do uso da cor e do cenário natal para essa valorização, o grupo Matizes Dumont tem no trabalho coletivo o bordar, compartilhado por três gerações da mesma família, e no conceito de bordar como ato identitário os elementos que conferem a um labor sem repercussão o estatuto de fazer artístico.
Alcançado esse patamar, o grupo volta-se a um projeto pedagógico, cujo objetivo reside na prática constante da escuta e do olhar sensível, caminhos para autoria, fundamental, na sociedade contemporânea, para a humanização das relações socais.A releitura de Portinari pelos bordados é, nesse contexto, a mais adequada possível.
Trazido ao Brasil por imigrantes de diferentes origens, o bordado pode ser caracterizado ao mesmo tempo como tecitura, urdidura, cor, movimento, forma, imagem. E enquanto imagem, o Grupo Matizes Dumont fez do bordado uma forma de “fazer com arte” nova expressão estética, uma expressão densa e profunda da alma e criatividade humana enquanto linguagem imagética.
Em alguns pontos, a linha do trabalho de Cândido Portinari e do Grupo Matizes Dumont se encontram e se entrelaçam.
Portinari realizou uma arte que fazia a síntese social do Brasil em busca da paz. Antes dele, artista plástico algum reconheceu a riqueza da brasilidade e a dignidade e beleza de negros, agricultores, crianças pobres, mulheres trabalhadoras cheias de filhos... O artista dedicou sua vida – trabalho e militância política – a lançar um olhar humanizador sobre essas condições e relações sociais, olhar revelado principalmente por suas pinceladas geniais.
O grupo Matizes Dumont ampliou o significado da arte anônima de bordadeiras do país e do mundo ao longo dos tempos: pontos criados com maestria se unem para formar telas, para ilustrar livros, para encantar olhares, para retratar o Brasil, sua gente, suas cores, suas brincadeiras, sua natureza. E ousando na arte do bordado, utilizado como ferramenta e linguagem, leva a paz e a dignidade para grupos de pessoas em ações de mobilização social. O bordado é ensinado pelas artistas, que são também educadores, arte-educadores, psicólogas e ambientalistas, em projetos de inclusão social, para grupos que se unem para aprender um novo ofício, para repensar suas ações e relações, para restabelecer a saúde individual, do grupo, da natureza. Porque arte e sanidade nascem na mesma fonte, e porque sanidade, harmonia e paz são irmãs gêmeas.
A arte popular possibilita puxar o fio e contar a história de vida de um povo. Forja, molda, constrói e transforma no aqui e agora com a força da ação conjunta, tecida: os dons e os valores se entrelaçam como os fios no tecido bordado entre e dentro do Coração em Paz.
"Unir as duas maestrias é uma homenagem a Paz que se conquista com a ajuda incomparável da arte".
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